6.3.09

Voar


- Vais voar, Ditosa. Respira. Sente a chuva. É água. Na tua vida terás muitos motivos para ser feliz, um deles chama-se água, outro chama-se vento, outro chama-se sol e chega sempre como recompensa depois da chuva. Sente a chuva. Abre as asas - miou Zorbas.
A gaivota estendeu as asas. Os projectores banhavam-na de luz e a chuva salpicava-lhe as penas de pérolas. O humano e o gato viram-na erguer a cabeça de olhos fechados.
- A chuva, a água. Gosto! - grasnou.
- Vais voar - miou Zorbas.
- Gosto de ti. És um gato muito bom - grasnou ela aproximando-se da beira do varandim.
- Vais voar. Todo o céu será teu - miou Zorbas.
- Nunca te esquecerei. Nem aos outros gatos - grasnou já com metade das patas de fora do varandim, porque, como diziam os versos de Atxaga, o seu pequeno coração era o dos equilibristas.
- Voa! - miou Zorbas estendendo uma pata e tocando-lhe ao de leve.
Ditosa desparaceu da sua vista, e o humano e o gato temeram o pior. Caíra como uma pedra. Com a respiração em suspenso assomaram as cabeças por cima do varandim, e viram-na então, batendo as asas, sobrevoando o parque de estacionamento, e depois seguiram-lhe o voo até às alturas, até mais para além do cata-vento de ouro que coroava a singular beleza de São Miguel.
Ditosa voava solitária na noite de Hamburgo. Afastava-se batendo as asas energicamente até se elevar sobre as gruas do porto, sobre os mastros dos barcos, e depois regressava planando, rodando uma e outra vez em torno do campanário da igreja.
- Estou a voar, Zorbas! Sei voar! - grasnava ela, eufórica, lá da vastidão do céu cinzento.
O humano acariciou o lombo do gato.
- Bem, gato, conseguimos - disse ele suspirando.
- Sim, à beira do vazio compreendeu o mais importante - miou Zorbas.
- Ah sim? E o que é que ela compreendeu? - perguntou o humano.
- Que só voa quem se atreve a fazê-lo - miou Zorbas.
- Suponho que agora te estorva a minha companhia. Espero-te lá em baixo - despediu-se o humano.
Zorbas permaneceu ali a contemplá-la, até que não soube se foram as gotas de chuva ou as lágrimas que lhe embaciaram os olhos amarelos de gato grande, preto e gordo, de gato bom, de gato nobre, de gato de porto.


Luís Sepúlveda, "História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar"

Dedico o final desta "história", que fascina e marca todos os que a lêem, à Angelina, à Fátima e à Paula, bem como a todos os adultos que já acompanhei neste processo. É muito gratificante ficar a ver-vos voar, muito emocionada, mas igualmente feliz, como o gato Zorbas. Depois de um percurso feito de lutas e de conquistas, de crescimento e de evolução, de renascimento e de reconstrução, vocês são a prova de que quando as pessoas se atrevem a voar, o conseguem mesmo fazer. Parabéns e obrigada por me deixarem acompanhar o vosso voo!

2 comentários:

  1. Muito obrigada por estas palavras, e não é a Mafalda que tem de agradecer mas sim nós por termos tido como profissional uma pessoa tão especial e maravilhosa como a Mafalda. Pois nas alturas menos boas em que a vontade de desistir era grande lá tínhamos a Mafalda para nos apoiar e incentivar, por isso, o meu sincero obrigada.
    Um beijinho muito grande.
    Angelina

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  2. Angelina,
    obrigada pelo seu carinho! É bom perceber que, no fundo, houve uma partilha de experiências e que a aprendizagem foi mútua, não só entre vocês, mas entre vocês e a equipa. O profissional de RVC acaba por ser um pouco como o gato Zorbas, mas cada um de vocês é como a gaivota, que sempre teve as asas para voar, só precisou de alguém que acreditasse nela...
    Um beijinho com carinho,
    Mafalda Branco

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