17.5.10

Sobre a importância das histórias...

O CONTO DOS CONTOS

“Era uma vez um povo… Era um povo escorraçado pela guerra, que vagueava pelo mundo à procura de um local onde pudesse finalmente assentar, onde pudesse construir uma aldeia. Depois de muito andar, por montes e valas, planícies e desertos, esse povo chegou a um sítio extraordinário. Tinha água por perto, terrenos bons para cultivo, um clima aprazível, nenhum inimigo à vista. O chefe sorriu, feliz por poder dar ao seu povo ordem que começasse a construir uma aldeia.
Os tempos que se seguiram só podiam ser de trabalho árduo. Foram erguidas casas, lavradas e semeadas terras, nume esforço para recomeçar uma vida que tinha sido interrompida.
Quando tudo estava terminado, o chefe começou a observar as gentes desta aldeia. Alguma coisa não batia certo! Dispunham de tudo aquilo de que necessitavam: casa, água, alimentos, paz… Mas faltava qualquer coisa. Não precisou de pensar muito para chegar à conclusão de que aquele povo estava triste. Carregava uma tristeza profunda.
Reuniu-se o conselho dos anciãos. O chefe ouviu os relatos de todos, e a verdade era a mesma – aquele povo sofria de uma mágoa imensa. Ninguém sabia o que fazer. Festas? Bailes? Discursos…? A reunião terminou sem que se chegasse a uma solução.
O chefe ficou sozinho, esgotado pelo cansaço e, escusado será dizer, pela mesma tristeza que afundava todos os outros. Sentiu-se inútil. Conduzira-os até ao sítio ideal e nada podia fazer para recuperar a sua alegria. Foi então que percebeu que, ao fundo da sala, ficara o homem mais velho da aldeia. Olhava para ele com o ar sereno de quem sabe a verdade. O chefe não rodeou a questão.
- Diz-me o que devo fazer…
O velho sorriu.
- Conta-lhes histórias.
O chefe ficou perplexo. Histórias?! Para quê? O velho adivinhou-lhe os pensamentos.
- Para que recuperem uma identidade, uma memória comum, se quiseres, para que a construam juntos, para que recuperem os afectos através de invenções, recordações, sensações…
O chefe estava demasiado cansado para rebater. Nada do que ouvia lhe fazia sentido, mas ele não sabia que sofria do mesmo mal que todos os outros – perdera uma boa parte da esperança. No entanto, no seu íntimo, sentiu que devia confiar, e foi por isso que convocou para a noite seguinte todo o seu povo para uma reunião à volta da fogueira.
Quando viu que todos haviam comparecido, arrepiou-se. Suspirou e contou uma história. Perante a perplexidade de todos, contou a única história que conseguiu recordar. O povo, calado, escutou. Ninguém comentou, mas também ninguém abandonou o local com pressas. E o velho, sentado a um canto, sorriu.
Na noite seguinte, à hora marcada, já várias pessoas estavam sentadas à volta da fogueira, e o chefe, com algum alento ganho na noite anterior, contou duas histórias – uma de feitos antigos, e outra, inventada ao sabor das chamas do lume.
Na terceira noite já todos haviam chegado quando o chefe se aproximou da fogueira. Contou, com algum receio, mais uma história inventada, e quando acabou, olhou para o velho. Estava sem forças para contar mais! E foi nesse momento que um homem ergueu a voz e disse:
- Agora conto eu…
E ali nasceu uma narrativa onde se reconheciam farrapos da história daquele povo e muita fantasia. No entanto, quando se calou, outro homem relatou um breve episódio do passado. Muitos se riram pela forma engraçada como ele lhes apresentou aquela pequena história, e uma mulher falou:
- Lembro-me de ouvir a minha mãe dizer que o mais importante é a forma como contamos… Pode ser uma história simples, mas se a contarmos com entusiasmo, com emoção, ela transforma-se numa grande história!
E a mulher contou mais uma.
Quando terminou, o silêncio que se espalhou a seguir foi uma espécie de aconchego para todos. Despediram-se uns dos outros com um sorriso nos olhos.
Nos serões que se seguiram, ninguém precisou de ser avisado para comparecer junto à fogueira. Já esquecidos do esforço do chefe nos primeiros dias, os contadores foram nascendo, inventando, partilhando e, aos poucos, a alegria voltou a habitar junto daquele povo.
Numa tarde, o chefe encontrou o velho junto ao rio. Este sorria e brincava com a água. Sentou-se ao seu lado e perguntou:
- Como é que sabias que ia resultar?
- Como é que podia não resultar? – devolveu-lhe o velho. – Devias escrever estas histórias. São a memória do teu povo.
- Memória? Mas não são verdadeiras… Quer dizer… São bocados do passado, invenções, brincadeiras…
- Diz-me: conheces alguma história que seja inteiramente verdadeira?...
A esta pergunta o chefe não respondeu. Mas o que é certo é que escreveu e viu escrever outros no seu lugar. E viu renascer a esperança e a alegria no seu povo.”

Margarida Fonseca Santos e Rita Vilela, in “Histórias para Contar Consigo”

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