8.9.09

Identificação

Certa manhã, meu pai ordenou-me inesperadamente:
-Diz à tua mãe que te vista o fato novo para ires tirar o retrato:
Admirei-me:
-Mas hoje não é o dia dos meus anos...
-Pois não. Mas lá em Beja precisam de dois retratos. É para te identificarem.
-Identificarem?
-Sim. Para saberem que és tu e não outro.
-Não percebo - recomecei, desconfiado. - Como podem eles supor que vai outro em meu lugar?
Daqui por diante, a conversa complicou-se de tal modo que meu pai perdeu a serenidade; gritou-me:
-Faz o que te digo, rapaz!
Fiz. Nada mais havia a replicar quando meu pai me chamava rapaz. Era uma regra que, à custa de alguns sopapos, eu acabara por introduzir nas nossas relações. Respeitando a regra, foi, pois, a minha mãe que me vestiu de ponto em branco.
Daí a pouco, com grande escândalo dos meus amigos, passei pelo largo, a caminho da casa do senhor Rodrigo. E eu, tido e respeitado como um rapaz às direitas, lá ia de enorme colarinho de goma, ao lado do meu pai.
Nem olhava para ninguém.
E, ainda hoje, após tantos anos, sinto vergonha. Não já pela gola, mas pelo rosto de estarrecido espanto com que fiquei no retrato.


Manuel da Fonseca, in "O Fogo e as Cinzas"

Sem comentários:

Enviar um comentário